UMA VIAGEM NOS TRILHOS
Não tinha a menor idéia do que era caminhar sobre os trilhos de uma ferrovia. Nunca havia pensado nisso, nem de longe. Meu negócio sempre foi subir e descer montanhas, campos e ravinas.
Quando o Waldson postou aquela mensagem para o andarilhos.org, pedindo votos para sua foto, me interessei pelo assunto e fui navegar pelo “site” amantes das ferrovias.com que hospedava o dito concurso. Cadastrei-me e sou hoje um usuário constante desse sítio, pois trás assunto de muito interesse. Fiquei fã do negócio.
Descobri um mundo incrivelmente belo sobre ferrovias.
Aguçou mais ainda minha idéia quando vi que o assunto mexeu com minha memória ao perceber que alguns internautas postavam assuntos e fotos sobre São João Del Rei e ainda mais... com fotos de locomotivas antigas. Revi as fotos da 42, da 21, da 68, caldeireiras Baldwin fabricadas nos anos 40 que serviram à antiga Rede Mineira de Viação, de saudosa memória, pois foram as máquinas que eu vi e andei nelas quando criança. Pirei...
Entre uns e outros, descobri um capixaba que havia feito o “Caminho dos Trilhos” entre Viana e Domingos Martins. Informei-me sobre os dados, dificuldades e eis que se apresentou uma oportunidade de fazer algo diferente - o percurso até o Vale da Estação em Domingos Martins.
Traçado o objetivo parti para a logística do negócio, não sem antes convidar meu amigo Jorge Rangel, igualmente ocioso, ou melhor, com disponibilidade programada de tempo, nesses tempos de pós aposentadoria. O prezado andarilho não se fez de rogado e topou no ato, pelo que acertamos o dia.
Mal amanheceu o dia 9 de dezembro o telefone tocou e o Jorge disse que iria passar lá em casa às 06h00h em ponto. Acreditei.
O cara não mente e pontualmente às 06.10h estava eu dentro do seu Ford Eco Sport junto do colega Otavio Andrade (aquele dono do Bar EU ACHO É POUCO – olha o jabá aí gente, em Jardim Camburi), companheiro de tantas caminhadas), prontos para o destino Viana.
Saímos pela descida do Palácio Anchieta e rapidamente ganhamos a BR 262 que àquela hora apresentava ainda pouco movimento. Logo atravessamos o trevo da Ceasa e passamos pelo posto da PRF em Viana, entrando á direita para acelerarmos rumo á pequena estação de Viana.
O Jorge optou por deixar o carro no posto de gasolina logo antes da estação e, depois de acertar os ponteiros com o gerente, rumamos para a pequena estação de Viana cerca de 1000 metros à frente, passando debaixo de um viaduto da BR. De construção típica, está bem conservada e serve de abrigo para a litorina(vagão autopropelido dotado de assentos confortáveis e outras facilidades) que faz o passeio nas montanhas.
Uma locomotiva antiga e um pequeno vagão compõem o cenário bucólico do local.
Alguns trabalhadores de conservação da linha férrea aguardavam sentados ás margens da linha aguardando a hora de pegar no batente e foi com eles que nos informamos que uma composição iria descer ainda naquela manhã. Com isso, ficamos precavidos para qualquer eventualidade.
Histórico da Linha:
O que mais tarde foi chamada "linha do litoral" foi construída por diversas companhias, em épocas diferentes, empresas que acabaram sendo incorporadas pela Leopoldina até a primeira década do século XX. O primeiro trecho, Niterói-Rio Bonito, foi entregue entre 1874 e 1880 pela Cia. Ferro-Carril Niteroiense, constituída em 1871, e depois absorvida pela Cia. E. F. Macaé a Campos. Em 1887, a Leopoldina comprou o trecho. A Macaé-Campos, por sua vez, havia constrtuído e entregue o trecho de Macaé a Campos entre 1874 e 1875. O trecho seguinte, Campos-Cachoeiro do Itapemirim, foi construído pela E. F. Carangola em 1877 e 1878; em 1890 essa empresa foi comprada pela E. F. Barão de Araruama, que no mesmo ano foi vendida à Leopoldina. O trecho até Vitória foi construído em parte pela E. F. Sul do Espírito Santo e vendido à Leopoldina em 1907. Em 1907, a Leopoldina construiu uma ponte sobre o rio Paraíba em Campos, unindo os dois trechos ao norte e ao sul do rio. A linha funciona até hoje para cargueiros e é operada pela FCA desde 1996. No início dos anos 80 deixaram de circular os trens de passageiros que uniam Niterói e Rio de Janeiro a Vitória
Às sete em ponto demos inicio a nossa caminhada.
Caminho que seguia, avistavam-se à direita os montes que ascendem em direção a Domingos Martins pela BR 262. Com esse visual, atravessamos a periferia da cidade de Viana, caracteristicamente igual à maioria das outras com muito lixo espalhado e esgoto correndo para os leitos dos riachos e córregos. Alguns minutos após não víamos casa alguma e a caminhada se tornou mais ativa, limitada pelo piso duro e pedregoso leito dos trilhos.
Silencio apreciativo. Muita mata rala, pássaros e a paisagem não se renovava, pois o leito da maioria das ferrovias é estreito e limitava a visão.
Ao longe se ouvia o ronco dos motores dos carros e caminhões que subiam a BR262. Ao lado, uma estradinha de terra que liga Viana à Santa Isabel.
Caminhar nos trilhos não é uma tarefa fácil, pois se deve cadenciar os passos de acordo com a distancia entre um dormente e outro e esta distância nem sempre é igual, de modo que alterna-se passos mais curtos e com outros um pouco mais espaçados e isso cansa.
Quando se cansa dos passinhos nos dormentes, passa-se a andar sobre as pedras de brita que são escorregadias, pontudas, roliças e derrapantes. Se você não estiver com um calçado adequado corre o risco de torcer o pé, por isso o cuidado é constante e isso te obriga a olhar sempre para baixo o tempo todo. Nessa batida, à vezes, você perde um lance digno de fotografar.
Mas seguimos caminhando entre pedras e dormentes, ora por um caminhozinho lateral, também pedregoso ora batido, ora úmido, mas sempre com as benditas pedras no caminho.
Duas horas depois, lá pelas 9:30h, ouvimos o barulho forte de uma draga atracada no meio do Rio Jucu a retirar areia e esse barulho muito forte nos impediu de ouvir o trem, que veio rápido numa curva, mas com tempo e espaço suficientes para nos afastarmos. Não deu tempo suficiente para fotografar.
Percebi que o condutor portava óculos escuros e fones de ouvido, mas parecia dormir como se estivesse entregue a um piloto automático.
Passou rápido e ficamos aliviados em saber que não haveria mais trens naquela manhã e assim calmos e tranqüilos, seguimos apreciando a paisagem . Sempre o rio à nossa direita, muito abaixo de onde estávamos, precipícios imensos, montanhas de pedras sem fim, muita mata e muitos pássaros.-sabiás, coleirinhos, papa-capims,sanhaços,etc.
Muitas vezes tivemos que passar entre duas rochas cavadas pelo homem para o curso dos trilhos e, nessas ocasiões, para refrescar do forte calor, tomamos umas duchas e sorvemos daquela água pura e limpa. Deparamos-nos com uma bica usada antigamente para abastecimento das locomotivas e fotografamos imensa caixa d’água escondida pelo mato.
Cerca de3 horas e meia de caminhada veio o primeiro grande pontilhão e à frente dele um grande túnel. Nesta hora pensei na minha lanterna que ficou esquecida em casa. Com certo receio, atravessamos o pontilhão, dormente por dormente, devagar e sem olhar para baixo, e chegamos à entrada do túnel. Respiramos fundo e fomos em frente, para alguns minutos depois cairmos em completa escuridão!
Devagar e tateando pelas paredes confiantes em que não haveria mais nenhum trem, fomos, passo a passo, vencendo aquele obstáculo em curva, para depois, com alívio, percebermos que havia luz no fim do túnel. Foi um momento tenso, coisa de marinheiro de primeira viagem, tanto o pontilhão quanto o túnel, mas vencemos o medo e logo na saída paramos para um lanche (que estava na mochila) e hidratação.
Com calma e devagar comemos e bebemos, fizemos as fotos de praxe e recomeçamos o trajeto, agora mais experientes. Outros pontilhões e mais um túnel se sucederam, mas já estávamos experts no assunto, de modo que as travessias dos obstáculos se deram sem maiores temores.
Os maiores obstáculos nas travessias dos longos túneis foram os inúmeros, incontáveis e gigantes morcegos que nos obrigaram a uma luta ferrenha para, ao final, sairmos vencedores, mas isso é um “causo” à parte.
Já passava das onze horas e o cansaço já dava mostras de sua presença quando, para nosso alívio, começou um temporal para ninguém botar defeito. Chuva pesada e constante que durou uma hora e quinze minutos. Eu que tinha levado minha capa de chuva, não molhei a mochila, mas era tanta água que, mesmo assim, fiquei ensopado da cintura para baixo.
O Jorge e o Otávio nem se fala. A mochila de ambos parecia uma bica vazando água por todos os lados. Mas foi sensacional e lavamos, literalmente, a alma e o corpo.
Nesse trajeto avistamos nas encostas ao longe as primeiras pessoas, camponeses cultivando suas hortaliças. Pessoas dignas de respeito, pois num local ermo como aquele, cultivar hortaliças e legumes, trabalhando de sol a sol, para depois embarcar por estradinhas mal conservadas e estreitas com destino à Ceasa e nem sempre receber um preço justo, é coisa para gente valente.
No caminho mais adiante encontramos a PCH Jucu, uma usina privada fornecedora de energia para a Escelsa, que fica escondida na mata. Paramos para fotos e achei que havia algum morador, mas ninguém apareceu.
O caminho seguiu depois da chuva, mais aliviado no calor, porém, com a dificuldade de sempre: os infindáveis dormentes e as pedras pontudas e escorregadias. Com a chuva, tivemos que redobrar os cuidados ao pisar nos dormentes, pois estavam muito escorregadios e isso ao atravessar os pontilhões gerou extrema cautela.
Mais uma hora de caminhada e chegamos de fato à primeira casa na beira da estrada e logo à frente avistamos um habitante que, para nosso alívio, nos informou que o Vale da Estação estava ali perto: uns 5 minutos.
De fato ao adentrarmos o povoado, eram 13h30min h, exatas 6 horas e meia de caminhada de 23 km nos trilhos, exaustiva, mas bela e atraente.
Paramos numa bica ao lado da estação para refrescar e adiante nos deparamos com a Lanchonete Vale da Estação para uma justa e merecida cerveja gelada. Nada para comer!!! E a fome apertando!!!
Pedimos as bebidas e logo apareceu um morador, de fenótipo alemão, olhos azuis e discretamente embriagados. Apresentou-se como Stein e pediu uma “meiota”. Falei que podia pegar com a dona do boteco, mas ele disse que ela não lhe venderia. Fui até o balcão e trouxe logo duas, uma para ele outra para dividir com o Jorge. Aí começou a encrenca, pois o dito alemão me confundiu com um personagem do programa do Silvio Santos e para entrar no jogo, confirmei que era eu mesmo. Foi uma piada, pois eu tive que me segurar no riso quando o figura me chamava de “Sambarilove”.
O Jorge, dando a maior força, fez com ele nos convidasse para a festa que começaria mais tarde em Santa Isabel. Falei que iríamos e prometi ao fulano que falaria com o patrão Silvio Santos, e mencionaria o nome dele no programa de cantores que eu, na mente dele, participava aos sábados no SBT.
Após tantas risadas pegamos de novo as mochilas e rumamos para o Café com Prosa, na saída de S Isabel para encher o estômago, a essas alturas, varados de fome. Seriam mais 4 km asfalto, mas ... no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho. Essa pedra pode ser traduzida com Adega do Ivo.Ivo Fiegl( argh!!)
Simpático, o Ivo nos atendeu bem, tomamos e compramos cachaça da melhor qualidade, inclusive ele alambica uma de abacaxi que é uma delícia. Degustação terminada pegamos de novo o caminho e rapidamente chegamos ao Café com Prosa onde, como sempre, saboreamos delicioso pão com lingüiça ou pernil.
Saciados, havíamos pensado em chamar o Lucas, taxista de Campinho, mas a garçonete nos informou que em cinco minutos passaria o ônibus para Vitória.
Esperamos um tempo e apareceu o próprio, embarcamos e por 2,50 reais, num pulo estávamos no posto de Viana onde estava o carro do Jorge.
Nesse caminho, surgiu uma dúvida sobre quantos dormentes existem na linha, um achava que eram 8.343, outro achava que eram 8.525, outro 9.182 dormentes, mas essa é outra estória que um dia vamos esclarecer.
Pela incerteza numérica gerada e algumas caninhas de reforço a embaralhar a mente, ficamos de resolver essa pendenga em oportunidade futura a ser acertada, aí é claro na companhia dos nossos estimados andarilhos.org.
Do Café com Prosa, pegamos o ônibus da Águia Branca que faz a linha Carolina/Vitória, catando jeca para todo lado num total de 5 hs de viagem- e chegamos sãos e salvos dessa aventura nos trilhos, que já está prometida a ser continuada em data a ser posteriormente definida.
Fotografias serão adicionadas oportunamente pela falta do cabo USB do celular de última geração que utilizei.
Abraços.
Vitória, 11 de dezembro de 2010.
Ulisses José de Souza
Jorge Rangel
Otávio Andrade